Por Marcos Silva
A solidão, o vazio, a desesperança, a apatia e o cansaço profundo são os sintomas da nossa época. Seriam também da universidade? A depressão, a ansiedade e o esgotamento pesam sobrea mente contemporânea, mas como os discentes e docentes das universidades brasileiras padecem? Afinal, sabemos que o capitalismo é mais que um modo de produção econômica; é também um modo de produção de subjetividades. Essas subjetividades são sempre determinadas historicamente, inclusive as subjetividades na universidade. Mudanças no capitalismo mudam o ethos de uma época. Assim, a universidade também não estaria fora dessa dinâmica. Essas são as premissas do importante e original livro de Heribaldo Maia.
De maneira muito perspicaz e contundente, o diagnóstico histórico e filosófico de Maia denuncia que “em termos estritamente econômicos, o Brasil impôs à universidade uma gestão neoliberal (empresarial), que alia arrocho fiscal, expansão quantitativa, precarização e aumento de produtividade. Essas transformações, porém, não dimensionam, sozinhas, quais os custos humanos desse conjunto de medidas” (p. 121). Essa imposição de uma agenda neoliberal na universidade tem consequências. Maia investiga o sofrimento psíquico, o custo humano, ocasionado pela imposição desse modelo nas universidades brasileiras.
Com exemplos variados e pertinentes da cultura pop, como filmes, literatura, música e artes plásticas (e até mesmo uma menção ao Craque Daniel), é um livro acessível e incontornável para aqueles que queiram pensar a complexa origem do tipo de sofrimento psíquico que assola as universidades.
A tese do livro é que a inserção da gestão neoliberal no ambiente acadêmico brasileiro potencializou fatores de abalo emocional e psíquico que, por sua vez, respondem pelo aumento no adoecimento mental nas universidades. Para tanto defender esta tese, Heribaldo discute tradições variadas, como a teoria crítica, a psicanálise e o marxismo, e diversos autores, como Marx, Engels, Foucault, Freud e Adorno, além de outros mais contemporâneos, como Honneth, Zizek, Butler, Han, Ehrenberg, Dardot e Laval.
Maia defende que a inserção da racionalidade neoliberal no ambiente acadêmico criou “uma verdadeira máquina bem cruel de moer gente” (p.163). A universidade é uma máquina depressiva (p 141). Afinal, “a contraface do mérito do “você tem potencial” é o “eu fracassei”(p. 87). Ou em outras palavras, “o barulho dos neuróticos e os surtos dos histéricos deram lugar ao silêncio dos depressivos, dos esgotados e dos ansiosos.” (p.140).
Segundo Maia, há fatores que transformaram a vida acadêmica, especificamente, numa fonte de tensão, desprazer e insatisfação contínuas, gerando consequências patológicas de ordem psíquica que, sem um horizonte de alívio, podem gerar sofrimento e adoecimento (p. 22).
Em sua análise, Maia defende que a crise como modelo de gestão também é causa das perspectivas de futuro individual e coletivo, gestando um mundo de incertezas do qual a universidade não está excluída. Assim, diante desse cenário, o que vemos é que o aluno das universidades vem se tornando cada vez mais solitário e rodeado por um ambiente sem relações pessoais concretas, pois essas relações são sempre mediadas por tal racionalidade.
Há, assim, um espaço desprovido de comunidade, cujo resultado são relações desprovidas de sentimentos de pertencimento, solidariedade e acolhimento. O autor defende que “todos os vínculos tornaram-se contratos entre sujeitos-empresas em busca de uma melhor posição na concorrência desenfreada.
As consequências humanas são geralmente associadas ao esgotamento afetivo, sentimento de inadequação e coisificação das relações pessoais. Enquanto isso, em termos de sintomas mentais patológicos, a insônia, a apatia, a síndrome do pânico, a ansiedade, a depressão, e o esgotamento são cada vez mais relatados.” (p. 140).
Muitos relatam que não sentem forças para concluir o que começam. Além da baixa capacidade de gestão do tempo e da concentração, isso tudo acaba gerando um sentimento de inutilidade e culpa excessiva. Há sintomas físicos, como a insônia ou hipersonia, fadiga e perda de energia. Além disso, Maia discute também os problemas relacionados a uma visão de si preenchida por sentimentos de tristeza constante, vazio, falta de sentido e esperança, perda do interesse em atividades importantes do dia a dia, além da sensação de não estar à altura das exigências da vida acadêmica. Tais conjuntos de sintomas são consequência direta da lógica produtivista, defende o autor. A sensação de ser inútil, de não ter condições de cumprir os imperativos de desempenho constantes são fruto da racionalidade neoliberal, segundo Maia.
A obra apresenta três capítulos constituídos por quatro momentos principais. No primeiro momento, através da teoria crítica, o autor articula uma concepção de sujeito que mobiliza sintomas individuais de sofrimento e diagnósticos coletivos. No segundo, o autor mostra como mudanças sociais refletem mudanças na gramática social com uma discussão da história do capitalismo. No terceiro, é discutida a reforma neoliberal nas academias brasileiras. No quarto, há uma breve investigação dos documentos produzidos pela ANDIFES e pela FONAPRECE sobre o perfil de sofrimento psíquico de discentes das Universidades Federais, especialmente graduandos.
Chama a atenção do leitor que o terceiro e quarto pontos são muito mais curtos que os dois primeiros. No livro de Maia, há mais sobre teoria crítica, psicanálise e marxismo para entender o neoliberalismo que propriamente sobre a aplicação desse referencial teórico ao caso particular da universidade brasileira como promete o título e o prefácio do livro. A abordagem de Maia também se mostra, às vezes, demasiado restrita. Talvez por falta de dados não se investiga o fenômeno a partir de discentes da pós-graduação, nem de funcionários técnicos-administrativos.
O autor tampouco faz a diferença entre professores que se engajam com a pós-graduação e os que dão aulas somente na graduação. É importante lembrar que nem todo professor universitário realiza pesquisas. Não é estritamente necessário que as faça, pois não há sanções se não as fizer.
Além disso, professores de universidades privadas têm a demanda de muitas aulas e muitas pesquisas, mas não possuem a estabilidade que professores de universidades públicas ainda têm no Brasil. O livro também não trata das tentativas de extensão universitária, e aborda muito pouco o impacto do exercício de cargos de gestão administrativa de alguns docentes em sua saúde mental.
Há também uma simplificação do problema da produção nas universidades, acredito. O maior problema, com frequência, é a gestão, a meu ver, mais que a pesquisa. Estar em sala de aula, participar de eventos e escrever sobre os livros e artigos que lemos é um prazer.
Porém, a universidade brasileira expandiu muito, como o próprio autor observa no livro, especialmente com relação ao número de discentes, mas não com relação ao número de funcionários e à valorização salarial. A gestão exige muito de gestão de um profissional que não tem formação para isso. Ademais, em geral, a universidade não oferece treinamento para o exercício de cargos administrativos.
No livro de Maia, também senti falta do cruzamento com dados de outras fontes, além da ANDIFES. Também faltou discutir como essas questões atingem funcionários técnicos administrativos e talvez examinar como esses dados aplicam-se a países de capitalismo periférico na América Latina, como o Chile e Argentina, marcados pelo colonialismo, por ditaduras militares e pelo neoliberalismo recente, e eventualmente a outros países do mundo, uma vez que afirma: “Toda essa cultura neoliberal que propaga o desempenho está em consonância com a preparação e a execução das reformas globais neoliberalizantes.” (p. 128).
Há de fato um desequilíbrio nos capítulos, há bastante teoria e comparativamente pouco sobre a aplicação destas teorias diversas no ponto principal do texto, a saber, as universidades. Há uma longa introdução em teoria crítica e marxismo. Contudo, mais de dois terços do livro falam pouco ou nada sobre a universidade. Mesmo na parte teórica, há algumas lacunas de discussões para os interessados em Filosofia. Por exemplo, na longa parte filosófica, é interessante ver os jargões Wittgensteiniano e Kantiano articulados, mas não há esclarecimento sobre o uso do autor, como por exemplo: “são as relações intersubjetivas difundidas na gramática que constituem o fundamento ontológico para formação da subjetividade e a condição de possibilidade da narrativa individual. Ou seja: é a forma de vida em que vivemos que determina o horizonte de emergência de ser dos sujeitos” (p. 32).
A obra também apresenta vários typos, requerendo uma revisão mais detida para futuras e bem-vindas reedições.
Ademais, acredito que o livro, com frequência, mostra uma visão muito rudimentar da vida acadêmica e uma perspectiva bastante pessimista do ofício docente e da universidade pública.
Não é claro para o leitor como algumas críticas muito duras (e merecidas) ao neoliberalismo se aplicam à universidade brasileira. A transição da crítica ao neoliberalismo para a crítica na universidade me parece artificial em alguns momentos. Concordo que a expansão do modo de vida neoliberal gesta, gerencia e instrumentaliza graves danos psíquicos ao fundar uma nova gramática do sofrimento, impondo aos sujeitos uma nova forma de sofrer, mas não sei como algumas afirmações muito assertivas da análise do autor sobre neoliberalismo se aplicam à universidade. Por exemplo: “O adoecimento mental que hoje explode é sintoma de uma sociedade imersa em uma guerra de todos contra todos, em que cada vacilo é vivenciado sob a perspectiva da punição e da exclusão social, sem direito à solidariedade ou a qualquer espaço de comunhão e acolhimento, fazendo com que os sujeitos ignorem, sem questionamento crítico e político, a realidade em que vivem. A prioridade de cada existência é, antes de mais nada, manter-se vivo”. p. (120). O leitor não sabe como esta guerra de todos contra todos pode ser aplicado ao caso da universidade.
Acredito que às vezes é apresentada uma visão muito grosseira dos professores na universidade como “zumbis fazedores de artigos bem qualificados” (p. 173). Esse tipo de simplificação indevida gera incorreções na análise. Por exemplo, Wittgenstein foi muito produtivo, apesar do que Heribaldo relata na nota 301, (p. 137): “Wittgenstein, caso que considero paradigmático, produziu pouquíssimo em sua carreira como intelectual, o suficiente para que ele e sua obra tenham marcado a história da filosofia. Wittgenstein seria hoje um fracasso, um loser, diante dos parâmetros neoliberais de avaliação de produção do conhecimento.” Isso é confundir produção intelectual com publicações, uma confusão que aparece com certa frequência no texto de Maia. Há mais de 20.000 páginas de escritos em seu Nachlass, mas Wittgenstein optou por não publicá-las. Uma vez que foi um gênio e herdeiro de uma das famílias mais ricas da Europa, era mais fácil renunciar à dinâmica acadêmica.
Não é algo sobre-humano publicar quatro artigos em quatro anos. Essa é uma exigência da PROPG para a pós-graduação na UFPE, por exemplo. O risco reverso é cair em um falso dilema entre a hiperprodutividade e a ausência de produção e o imobilismo. O pesquisador deve sim participar de eventos, discutir outras pesquisas e os avanços da sua. É ingenuidade supor que filósofos famosos não tenham feito o mesmo pelo menos em termos de cartas e grupos de discussão com outros intelectuais, como Nietzsche e Marx fizeram (esses também foram mencionados na nota de Maia sobre Wittgenstein). O trabalho intelectual não precisa ser um trabalho acadêmico, como nas artes, e mesmo que seja filosófico, não precisa estar nas universidades.
Há também uma certa demonização da produtividade por Maia. Ser produtivo, disciplinado, autônomo e poder controlar o seu tempo com capacidade de auto-organização não deveria ser sempre ruim. Com frequência, são atributos bem positivos. O hiperprodutivismo, ao contrário, gera alienação, apatia e depressão, mas ser produtivo é muito bom. O livro parece tratar de hiperprodutividade e produtivismo, mas carece de uma reflexão sobre o papel do trabalho e da produtividade na vida humana em outras sociedades, inclusive não capitalistas.
Maia afirma: “A educação tornou-se apenas um instrumento totalmente capturado pela lógica de controle neoliberal, que possibilita formar um sujeito capaz de se autogerir dentro desse sistema, fazendo do aluno um ser capaz de administrar seu próprio valor.” (p.136) Por que a capacidade de autogestão e de administração de seus valores e competências é algo ruim per se? Há muito avanço, aquisição de autonomia e desenvolvimento pessoal e amadurecimento quando podemos gerir nossos próprios projetos e nosso tempo. O processo de tomada de responsabilidade pela própria vida e decisões é fundamental para o amadurecimento do indivíduo. Não há pedagogia real que não conduza o indivíduo para esse estado de autonomia. O contrário disso é uma infantilização do sujeito intelectual.
Maia defende também que o problema do adoecimento vem “da mudança do sujeito disciplinado pelo sujeito do desempenho” (p. 130). Entretanto, mesmo em culturas pré-capitalistas, sair e voltar sem nada, seja na caça, seja na agricultura, é um problema.
Com frequência, comunidades humanas sofrem com pressões ambientais severas que requerem disciplina, desempenho e técnica. Afinal, parece haver agora e em muitos momentos da história muito mais pessoas que recursos disponíveis. Para tanto, coletividade e coordenação de esforços são absolutamente fundamentais. Como fazê-lo sem disciplina? Não podemos cair no outro extremo e sermos condescendentes com dinheiro público sendo mal-usado para apatia, falta de produção, falta de reciclagem e aparente falta de interesse em pesquisa de alguns professores.
Deve haver um meio termo, não explorado por Maia, entre apatia e não produção e hiperprodutividade. O livro de Heribaldo parece tratar exclusivamente do último, mas apatia e imobilismo também podem gerar sofrimento psíquico.
Outro exemplo de uma visão que considero equivocada em relação à universidade: “A universidade regida pelo logos do desempenho produtivista sequestra a subjetividade de seus sujeitos, usando seus controles mais sutis para continuar transformando subjetivamente os sujeitos que a compõem, criando uma subjetividade adequada para o culto do desempenho propagado pela ideologia produtivista” (p. 128). Há muito ganho, por exemplo, no desenvolvimento de alunos quando participam diretamente de grupos de pesquisa, especialmente com bolsas PIBIC. Muitos discentes são formados com excelente postura crítica e desenvolvem pesquisas de ponta, inclusive o próprio autor do livro.
Outro exemplo: “Afinal, toda mediação entre pares, de status enquanto pesquisadores, professores ou alunos e das instituições remetem ao “produtivismo”; assim, toda a manutenção estrutural e financeira da universidade e das pessoas (salários, bolsas, bonificações, financiamentos etc.) são condicionadas pelos resultados avaliados pelos desempenhos individuais e institucionais.” (p. 128.) Não sei se concordo com essa afirmação tão geral. Não são todas as mediações que se fazem desse tipo. Algumas delas, sim, mas estão muito longe da maioria.
O livro motiva a discussão com professores e funcionários técnico-administrativos.
Todavia, é difícil passar da descrição da lógica de mercado feita no começo da obra para todas as políticas públicas, especialmente a administração da universidade. A universidade pública brasileira não é perfeita, mas é muito melhor que na descrição de Maia: “Criaram-se as condições de um ambiente sufocante em termos de pressão física e mental. Afinal, se por um lado mais campi foram construídos, aumentando muito as matrículas, e consequentemente, o número de estudantes, por outro, o número de professores, técnicos e, especialmente, de verbas pouco cresceram ou até mesmo diminuíram.” (p. 121). A universidade é um meio sufocante? Não é uma maravilha, mas é um dos poucos espaços onde podemos desenvolver pesquisas sem atrelamento ao mercado e sendo críticos a ele como, por exemplo, em pesquisas sobre marxismo e teoria crítica.
Ou “essa delimitação das fronteiras que a concorrência desenfreada produziu criou um ambiente social completamente instável que dá luz a vínculos sociais frágeis que privam o sujeito dos elementos que lhe oferecem sentido narrativo para “relatarem a si mesmos”. (p. 87).
Me parece óbvio que isso pode ser feito na universidade, talvez muito mais que em outros ambientes. “Esse falso vazio normativo nos vende a imagem de uma liberdade total e irrestrita, em que poderíamos fazer tudo o que quiséssemos, criando uma sociedade fragmentada e atomizada que remonta ao modelo societário hobbesiano de luta de todos contra todos – no neoliberalismo o “o homem é o lobo do homem”. (p. 87). “Guerra de todos nas universidades” me parece muito forte. Não vejo dessa forma. “Produzir ou perecer. O cogito ergo sum do ambiente acadêmico”. Tampouco é isso. A análise de Maia parece estar endereçada, muitas vezes, a um modelo privado norte-americano.
De toda forma, estas críticas não tiram o brilhantismo da obra. O importante livro de Maia motiva a pesquisa empírica e a reflexão filosófica sobre o adoecimento de discentes, professores e funcionários técnico-administrativos. Afinal, temos mais discentes na graduação, mas menos contratações de funcionários e desvalorização salarial. De fato, Maia estimula a pesquisa, abre possibilidades, mas não encerra o debate público, e serve de inspiração para que outros se juntem à importante missão de estudar e debater a saúde mental nas universidades.