Iugoslávia Ontem e Hoje: A Originalidade do Marxismo Iugoslavo

Iugoslávia Ontem e Hoje: A Originalidade do Marxismo Iugoslavo

Texto do grupo de estudos CREK (Círculo Revolucionário Edvard Kardelj)

Fazia exatamente 1 mês que a sociedade civil iugoslava, insuflada pelo Partido Comunista às ordens de Josip Broz, saiu às ruas de Belgrado e de diversas cidades para protestar contra o pacto com o Eixo. “Melhor a guerra que o pacto, melhor a morte do que ser escravo” era o grito que ecoou nas ruas iugoslavas em 27 de março de 1941 [1]. Tão rápida quanto a Blitzkrieg que se seguiu, foi a organização da resistência anti-fascista.

Um mês depois, 27 de abril de 1941, nos arredores da Ljubliana ocupada pelos italianos, na casa do escritor Josip Vidmar, em Rožna Dolina [2], se juntam lideranças de partidos de esquerda, sendo o Partido Comunista representado por Boris Kidrič, Aleš Bebler e Edvard Kardelj, para formar a Frente de Libertação Eslovena.  É formado o embrião do marxismo iugoslavo. São as táticas de guerrilhas, os comitês populares organizados pelos eslovenos (o “modelo esloveno” segundo Susan L. Woodward) e modelos rurais como as zadrugas (forma de organização agrária comum no território iugoslavo, caracterizada por uma série de dinâmicas baseadas na igualdade e na ajuda mútua) que vão definir uma série de premissas – tanto pelos mecanismos de decisão democrática e direta existente nas zadrugas e na Eslovênia quanto por uma possível “consciência solidária” já estabelecida – que posteriormente serão expostas e desenvolvidas pelo modelo titoísta, isso é, a autogestão iugoslava. [3]

Roberto Venosa frisa como seria incompleto explicar as especificidades do socialismo iugoslavo se baseando somente na sua ruptura com Stalin – assim como qualquer análise que anseie por atribuir a somente um agente todos os méritos e deméritos da experiência, seja acusando Tito ou a cúpula do SKJ de “revisionismo”, quanto se apegando a um modelo específico e implicando que seria “mais socialista” que outro – nesse sentido, essa organização tão consolidada nos povos que ali habitavam já constituiam mecanismo de decisão onde as prioridades eram definidas pela comunidade, embora, ainda, algumas estruturas hierarquicas ainda se mantivessem (a divisão de trabalho segundo sexo, idade e parentesco). [4] 

     “Seria audacioso de nossa parte afirmar que a prática autogestionária que se implantou na Iugoslávia entre 1950 e 1970 – com todas as ressalvas que se fazem a chamar esta prática de autogestão – teve suas origens na “zadruga”. Entretanto, é preciso reconhecer que a autogestão recuperou modelos de solidariedade há muito tempo presentes na memória dos povos iugoslavos.”

Quanto ao modelo esloveno, esse também era dotado de algumas características que devemos sempre levar em conta, como os conselhos e assembleias locais, esses que eram independentes do comando militar, assim como a redistribuição de terras inativas e tomadas de inimigos, que passam a ser expropriadas por cidadãos que desejam trabalhar. De toda forma, enquanto Venosa, ao analisar as zadrugas, faz questão de denotar não uma continuidade das zadrugas até a autogestão iugoslava, mas uma influência (por maior que seja), Woodward, sobre o estilo esloveno, estabelece uma firme continuidade entre as práticas organizacionais das guerrilhas durante o período de ocupação nazista e o modelo autogestionário adotado oficialmente. [5]

O sucesso da luta anti-fascista garantiu 5 décadas de irmandade e unidade entre os eslavos do sul, o desenvolvimento do socialismo deu autonomia aos povos subjugados por impérios, dividido pelos fascistas. Mas a sanha imperialista voltou a assombrar os Balcãs. Sem piedade, 50 anos depois da formação das vitoriosas resistências anti-fascistas, fez irromper o conflito novamente.

O berço do socialismo iugoslavo, a Eslovênia foi a primeira república a declarar independência, em 1991. E 30 anos atrás, 27 de abril de 1992, com a independência da Bósnia e Herzegovina, considera-se encerrada a República Socialista Federativa da Iugoslávia.

A prática socialista contemporânea entrará em conflitos de conjuntura, questões como a prática socialista e os meios para superar o sistema capitalista se tornam centrais no debate. Aspectos como o definhamento do estado, o centralismo e o papel do partido mudam a direção na qual cada revolução caminha. Embora a Iugoslávia fosse vista pelo Cominform como um modelo a ser seguido no leste europeu, isso é, quando os dois ainda eram aliados, as divergências e discordâncias que levariam iugoslavos e soviéticos a tomar rumos diferentes começaram a se evidenciar pelo fim de 1947; uma série de fatores precisamente sintetizados por Perović [7], acabam por acentuar as tensões entre o partido iugoslavo e as lideranças soviéticas, sendo eles, principalmente, a insistência de Tito em ajudar os comunistas na Guerra Civil Grega, onde iugoslavos e albaneses se uniram em apoio aos revolucionários do KKE em sua insurgência socialista, o que ameaçava diretamente os tratados entre Stálin e Churchill, que partilhavam o leste europeu em esferas de influência [6], assim como a questão da federação bulgaro-iugoslava (que Stalin apoiou em primeiro momento). Esses fatos, junto com a falta de subordinação dos iugoslavos aos acordos políticos e econômicos propostos (casos como o governo provisório em Jajce em novembro de 1943 sem o aval de Stalin, como Banac explora) desencadeiam, por fim, a ruptura e boicote por parte da URSS contra a Iugoslávia, o que também isolou a Albânia de Belgrado.

Frente à conjuntura onde a luta proletária de libertação nacional de países pequenos estava submissa à uma série de fatores burocratizantes por parte do centro da URSS, os teóricos iugoslavos vão, cada vez mais, notar as incongruências do modelo stalinista com a realidade material do país. A cúpula central do partido iugoslavo – que, denotando a ruptura, passará a se chamar de Liga dos Comunistas Iugoslavos após 1952 – retorna à Marx;  as obras escritas após os acontecimentos da comuna de Paris como o Dezoito de Brumário e o Guerra Civil na França são revisitados e analisados, a crítica impiedosa do posterior Marx ao estado assim como os ensinamentos da experiência francesa se tornam centrais, assim como a necessidade de revisitar esse período marxiano.

Edvard Kardelj afirmava que o aparato estatal se fez, em primeiro momento, uma máquina necessária para o avanço da revolução socialista Iugoslava. Não nega as influências stalinistas na época, mas, mesmo as superando posteriormente, o programa Tito-Kardeljiano se apoia no conceito de “definhamento do estado”, assim como analisado por Marx e Lenin, sublinhando uma necessidade do uso temporário do estado para garantir a estabilidade dos processos de libertação nacional assim como a supressão de elementos contra-revolucionários, mas, tão logo desnecessário, o estado deverá definhar completamente.

Esse definhamento do estado não deve ocorrer de forma nominal e jurídica, mas deve ser o resultado orgânico do desenvolvimento da classe trabalhadora, num contexto onde a consciência revolucionária é alinhada a sua atividade mais imediata, sendo assim, tomando parte ativa na construção do socialismo.

O caminho para o posterior definhamento do estado se torna, então, a autonomia da classe operária cada vez mais manifestada em suas organizações e associações livres: os conselhos, as comunas, as cooperativas e os órgãos autônomos de serviços sociais.  [8]

Um sistema com raízes tão fortes na descentralização e nos mecanismos diretos de decisão (tanto a nível político quanto a nível econômico, como no próprio conceito de autogestão) abre um novo leque de possibilidades de atuação política e partidária, uma vez que, em um sistema de autogestão, os rumos da construção socialista também como os meios de melhor suprir as próprias necessidades são definidos e protagonizados pela própria classe trabalhadora.

Kardelj, dissertando sobre formas de vanguarda e forças de direção socialista, se afasta de uma análise onde o partido deve apontar as direções para construção socialista na classe trabalhadora de forma isolada e superior á ela; pelo contrário, Kardelj atribui a tarefa de vanguarda não só ao partido, mas a outras organizações “oficiais” como a Aliança Socialista do Povo Trabalhador, e organizações que nascem no seio da classe trabalhadora, como os sindicatos, os conselhos e  toda organização espontânea que reivindique e atue politicamente segundo suas necessidades mais imediatas. Dessa forma é exprimida, novamente, a necessidade da organização de vanguarda em ter consonância com as contestações espontâneas da classe trabalhadora, onde, do contrário, num contexto onde o partido perde seus vínculos com a classe trabalhadora, essa se torna apenas uma fração minoritária e burocrática. [9]

O autor, em vários momentos, parece tentar transcender a dicotomia entre vanguardismo e espontaneísmo, e isso faz com que o papel da Liga e das forças de vanguarda no socialismo Iugoslavo se torne, em vários casos, uma intersecção entre organizações espontâneas da classe operária e as organizações oficiais que servem para manter clara a direção da classe operária para a formação de uma sociedade socialista. Um caso interessante acontece na mesma época que Kardelj aborda o tema da vanguarda, isso é, na década de 70: Uma série de reivindicações sintetizadas no 2° congresso dos autogestionários se tornaram depois parte da constituição de 1974 da Iugoslávia. [10]

Essas e mais uma série de fatores programáticos tornam a autogestão iugoslava uma experiência tão excêntrica e, acima de tudo, original. Aprofundar o conhecimento sobre ela e assimilar os erros e acertos dessa experiência se faz de extrema importância na construção de um programa socialista e revolucionário.


[1] BISHOP, Chris. Campaigns of world war II: day by day (São Paulo: Editora Escala, 2009), 40-43.

[2] Antifasisticki vjesnik. Dan Osvobodilne Fronte. Disponível em: https://www.antifasisticki-vjesnik.org/hr/kalendar/4/27/54/

[3] MIGUEL, Sinuê Neckel. O labirinto da autogestão: caminhos e bloqueios socialista iugoslavo. 2017. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. p. 37-40.

[4] VENOSA, Roberto. A institucionalização de tipologias organizacionais. Um estudo de caso:a autogestão na Iugoslávia, 1981. Trabalho apresentado na reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisas em Ciências Sociais, no grupo de trabalho “Organizações e Sociedade”

[5] WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press, 1995.

[6] BANAC, Ivo. With Stalin against Tito: Cominformist Splits in Yugoslav Communism (Nova Iorque: Cornell University Press, 1988), 15.

[7] PEROVIĆ, Jeronim. The Tito-Stalin split: a reassessment in light of new evidence. In: Journal of Cold War Studies, Vol. 9, N. 2, Spring 2007

[8] KARDELJ, Edvard. Socialist democracy in Yugoslav practice. In: Annals of Public and Cooperative Economy, Nova Jersey, v. 26, n. 1, p. 1-39, 1955.

[9] KARDELJ, Edvard. The task of the guiding socialist forces in the further improvement of our political system.

[10] MIGUEL, op. cit., p. 126-130

O processo criativo editorial: as capas da Ruptura

27 de abril de 2022